Nos dias 03 e 04 de Outubro/2019, no auditório do Superior Tribunal de Justiça (DF), foi realizado o VIII Congresso de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro, organizado nesta oportunidade pela Comissão de Direito Portuário e Marítimo da OAB/DF. Fui convidado, enquanto Presidente da Comissão de Direito Marítimo e Portuário da OAB/SP, a presidir um dos painéis, e assisti a todos do dia 03 e aos realizados na manhã do dia 04. Agradecendo a Diretoria da OABSP, retribuo essa participação compartilhando as minhas impressões e percepções sobre as discussões havidas, no intuito de contribuir com a divulgação do conhecimento lá produzido, sem deixar de tecer uma análise crítica.
Tema que foi destaque e objeto de dois painéis diz respeito à intervenção e controle estatal sobre a atividade portuária. Há uma sensação do setor regulado que há uma ingerência excessiva dos órgãos de controle, em especial ANTAQ e TCU, e da própria Justiça, sobre a atividade, do que são exemplos as recentes resoluções ANTAQ ns. 31/2019 e 34/2019 - a primeira suspensa, por ação das associações de classe setoriais, em razão de liminar recentemente obtida; a segunda em vacatio até fevereiro/2020. Parte dessa celeuma e resistência remonta a uma calorosa discussão sobre a natureza jurídica da atividade: serviço público x atividade econômica, que teve seu ápice em meados de 2008, quando os arrendatários advogaram a natureza jurídica de serviço público, que impedia os terminais privados (então privativos) a operar carga de terceiros sem que tivessem se submetido a um processo licitatório. A discussão foi aparentemente superada com a edição da Lei 12.815/2013, quando restou permitida a operação de terminais privados sem qualquer distinção de carga, sob regime de autorização, em concorrência com os terminais arrendados que operam no porto público. Afora uma concorrência assimétrica – ao menos em bases distintas de custos e deveres contratuais -, para a Antaq ambas devem estar submetidas à regulação e devem oferecer “serviço adequado”, como estabelecem as minutas contratuais. Na visão da agência, estão sujeitas à fiscalização e supervisão dos preços praticados - impensável ao setor regulado, que defende a liberdade de preços. Marçal Justen Filho, presente no painel, trouxe que a “assimetria cognitiva” do Estado impede que seja realizada uma regulação econômica eficiente, revelando que apenas no Brasil convive-se com a regulação de serviços públicos, na acepção jurídica aqui desenvolvida; ainda, na visão do jurista, o controle deveria ser obtido com a concorrência dentro do setor, haja vista que a regulação de forma geral não produz essa eficiência, pelo contrário. O representante do Ministério da Infraestrutura, que demonstrou sintonia com o pensamento da agência reguladora, revelou que 75% da movimentação portuária no Brasil é realizada em cadeias integralmente verticalizadas (“auto-serviço”, commodities) - onde, na minha visão, o controle de preços ou mesmo “serviço adequado” não tem relevância. Na tangência desse tema, a Agência reguladora trouxe um fato que tem sido objeto de preocupação: a verticalização nos terminais de contêineres - diferente da verticalização na cadeia de commodities acima citada -, cuja concentração demanda uma regulação mais acurada, pois representa um controle em dois elos representativos (transporte marítimo e movimentação/armazenagem portuária) para o custo da cadeia de produção, quer do comércio ou da indústria, com potencial dano para os importadores e exportadores nacionais. Parece-me que uma ideia para a mitigação, ou moderação, deste controle reside na divisão do que são serviços-preços contratados, v.g. movimentação portuária de embarque e desembarque, e armazenagem, onde há concorrência, daqueles que são impostos pela posição na cadeia (i.e., sem possibilidade de negociação), tais como tarifas de rolagem de carga, serviço de segregação, scanner, movimentação para fiscalização de órgãos intervenientes, entre outros). A ausência de representantes da carga (indústria nacional) foi prejudicial ao debate e reclamada pela Agência.
No que toca à discussão do impacto econômico das decisões judiciais e de órgãos de controle (TCU), foram trazidos exemplos de toda sorte: IPTU/arrendamento e suspensão de processos licitatórios por parte da Justiça, bem como a decisão do TCU de suspender as prorrogações extraordinárias dos arrendamentos - tema deveras sensível ao setor -, e ordenar a realização de certame licitatório em prazo risível (decisão referente a um arrendamento portuário em Santos prorrogado irregularmente). O representante do TCU no painel fez explanação do processo decisório dentro da Corte de Contas, revelando que menos de 5% das decisões tomadas pelos Ministros contrariam a instrução técnica dos auditores e setores de fiscalização do órgão – o que, conceitualmente, é alvissareiro. Embora a Antaq não estivesse presente no painel, há uma sensação de que o histórico de decisões tomadas pela Diretoria da Agência em detrimento da posição e instrução técnica é maior do que a revelada na Corte de Contas. O representante da AGU lamentou a posição do setor portuário, que, quando interessa, advoga a natureza pública do serviço portuário (e sua necessária continuidade, para a obtenção de liminares, por exemplo, contra o interesse do Poder Concedente) e, quando não quer os controles, advoga a natureza de atividade econômica e a liberdade de preços; com isso, procurou demonstrar que parte das decisões que impactam negativamente o setor deve-se a uma cultura de excessiva e irracional “judicialização”. Destacou, ainda, uma decisão do STJ (Resp. 1.662.196), na qual garantiu-se ao monopólio dos serviços de praticagem liberdade na fixação de preços (?!) - algo intrinsecamente incongruente. O representante do MINFRA trouxe sua irresignação quanto a uma recente decisão judicial que suspendeu um procedimento licitatório gestado há tempos no Ministério, que havia seguido diretriz do próprio Tribunal de Contas (concorrência e concentração de participantes), demonstrando o prejuízo financeiro que esse atraso acarretou para a Autoridade Portuária. A sentida ausência de representantes do Poder Judiciário, em especial nesse painel, deixou o tema sem resposta. A atual Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB) poderia ser instrumento eficaz a combater essa realidade, mas a resistência generalizada do Poder Público, e destacadamente do Poder Judiciário, em fundamentar e analisar o impacto econômico de suas decisões atrasa essa solução. Também a cultura da “judicialização” de qualquer tema, e em especial de assuntos técnicos, é o principal ingrediente desse caldo; foi lembrado no painel que em alguns países a Justiça não discute a conveniência e oportunidade do ato/decisão administrativa; o que pode ser um interessante tema para aprofundamento desse debate, mas exigiria uma postura técnica e não política dos órgãos de controle, o que me parece distante de nossa realidade.
O setor de cabotagem também teve um painel dedicado à sua discussão com representantes da indústria naval, das companhias de cabotagem e do governo, representado por técnicos do Ministério da Infraestrutura e Economia. A discussão gravitou em torno da esperada Medida Provisória “BR do MAR”, em gestação no MiNFRA. A ideia da MP é alavancar novos investimentos, flexibilizar regras de afretamento e facilitar novos entrantes. A indústria de construção naval (estaleiros) revelou números assustadores sobre o encolhimento do setor, como a redução pela metade dos postos de trabalho e as agruras que vem passando depois do boom vivido pelo setor com o incentivo à indústria do offshore; reclamou da falta de assimetria com os concorrentes asiáticos. Em sentido oposto, o representante dos armadores de cabotagem revelou que o setor vem crescendo a taxas de 12% (!) ao ano, demonstrando uma flagrante desvinculação entre as indústrias, que confirma a assimetria entre a indústria naval nacional e a estrangeira e coloca uma dúvida na pertinência e oportunidade da MP “BR do MAR”. Nesse sentido, o representante dos armadores deixou claro que a navegação é um setor intensivo de capital, oligopolizado, que necessariamente opera com afretamentos de longo, médio e curto prazos para lidar com as oscilações e riscos do mercado e que a intervenção estatal deve visar alavancar esse crescimento, com a redução de entraves e custos. Foram lembrados os eventos de maio/2018 que escancararam a irracional matriz brasileira de transporte.
No segundo dia de debates, começamos com a discussão da aplicação das Convenções Internacionais pelo Poder Judiciário – painel a discutir propriamente o Direito Marítimo. Na visão desse autor, os representantes do Poder Judiciário são desafiados com temas específicos que não possuem obrigação de conhecer, mas tem respondido bem quando o tema é a aplicação das Convenções. No entanto, o representante da Marinha no evento, que demonstrou vasto e preciso conhecimento sobre o tema das Convenções, mostrou-se ligeiramente incomodado com as respostas que a Justiça tem dado para a aplicação de Convenções ligadas ao meio ambiente e segurança da navegação; de forma polida, defendeu uma interpretação mais cuidadosa e contextualizada e, principalmente, o respeito e aplicação das Convenções ratificadas e internalizadas pelo Brasil que, quando desconsideradas, rebaixam a imagem e credibilidade internacional do país. O representante do Ministério Público do Trabalho, que já foi Presidente do CONATPA, trouxe o tema do trabalho marítimo e a respectiva convenção internacional, que tem tido posição divergente e oposta entre as turmas do Tribunal Superior do Trabalho, no que se refere à aplicação da CLT ou à legislação da bandeira de conveniência do navio. O representante do MPT demonstrou também acurada sensibilidade com a indústria, especialmente de cruzeiros, ao reconhecer como razoável a aplicação da convenção e contratos internacionais de trabalho. Outro tema que esteve presente diz respeito ao fato de o Brasil não ter assinado nenhuma das convenções internacionais sobre o transporte marítimo de carga (Hague, Hague-Visby, Roterdã, por exemplo). Não há consenso dentro do setor, mas é indubitável que o Brasil é um país da “carga”, isto é, não possui marinha mercante, e seu interesse é proteger a responsabilização integral do transportador, o que as Convenções, em regra, excepcionam. O contraponto é que há países com esse mesmo perfil “carga” que aderiram aos termos das convenções. O consenso, ao final, foi o de que não podemos fugir dessa discussão de forma simplória: é dever do país analisar com cuidado os termos das convenções, encontrar o equilíbrio e atualizar sua legislação alinhando-se às melhores práticas internacionais, sem descuidar do interesse nacional.
A recente Resolução 34/2019 (art. 10) foi tema do último painel da manhã do dia 4, mas com o foco exclusivo na rolagem de carga, seus custos e responsabilização. A Agência defendeu os termos da solução apontada, imputando ao terminal o dever de direcionar a cobrança ao responsável: carga ou navio; revelando que a solução não é nova, pois adotada na Resolução n. 01 de 2008 do Conselho de Autoridade Portuária (CAP) de Santos; e revelou, ainda, que se debruçou sobre a problemática, pois foi deveras demandada pelos exportadores nacionais, além de decidir um sem número de casos e processos - contrapondo-se ao discurso da intervenção excessiva e desnecessária. O que se seguiu foi uma discussão comercial “sem o cliente” (carga), tanto os armadores quanto os terminais contestaram a solução proposta: os armadores alegando que a rolagem não é feita de forma volitiva, mas sempre ligada a um evento pretérito nas escalas anteriores, ao passo que o terminal recusou-se a assumir a função de árbitro (“cobrar do responsável”), considerando a relação contratual existente com os transportadores. O representante do Poder Judiciário ao evento contestou o poder da Agência de criar regras sobre responsabilidade civil, confundindo, na minha modesta visão, regulamentação com regulação - dois institutos distintos, com posição (em favor do poder normativo da regulação) jurisprudencial consolidada, quer do STJ, quer do STF. Perdeu-se uma grande oportunidade para uma discussão jurídica profunda sobre a regulação setorial, os limites do poder normativo e a discricionariedade técnica da Agência; e, principalmente, a discussão da razão de ser da agência que, parece-me, é justamente criar as condições ideias, equilibradas, para um serviço adequado que proteja o usuário, sem perder o foco na atratividade da atividade para o investidor. Em que pese o debate jurídico não ter avançado, restou a sensação de que algo que deveria ser celebrado: o regulador enfim olhando o usuário e procurando equilibrar a relação, acabou por ser objeto de crítica. Falta de cultura ou compreensão regulatória?
Minha análise conclusiva é positiva. Acredito que a escolha dos temas, a participação das autoridades setoriais, a forma proposta para as discussões e até a inovação (slido) na interface com o público foram pontos altos do Congresso e sua detida organização. O equilíbrio dos atores (ou “paridade de armas”) e a multilateralidade são pontos que precisam ser repensados para o próximo Congresso, que ocorrerá em Itajaí. A presença das Universidades, a publicação de trabalhos e estudos são pontos que as Comissões deveriam mirar para o crescimento do Direito Marítimo brasileiro - e lugar melhor do que Itajaí não há, haja vista a rica contribuição lá produzida. O fato de o Congresso ter sua gestação dentro da marca “OAB” impõe a todos um dever de lutar por princípios, sem lados, de buscar o equilíbrio, a transparência e um dever de servir, pois todos ganharão com os resultados.