A responsabilidade civil no Direito brasileiro pode ser compreendida como a obrigação de reparar prejuízos causados por determinada conduta. Tal preceito depende da existência do dever de indenizar no caso e a verificação dos pressupostos da responsabilidade, quais sejam a ação ou omissão voluntária (dolo); a negligência, imprudência ou imperícia (culpa); a ocorrência de dano; e relação de causalidade entre dano, conduta do agente causador do dano.
O dano, nesse sentido, poderá ser patrimonial, i.e., aquele que atinge frontalmente o patrimônio da vítima, reduzindo-o de forma que seja possível a sua valoração. Destarte, o dever de indenizar do agente causador do dano implica reparar o tanto quanto possível o status econômico da vítima, anterior à produção do desequilíbrio patrimonial.
Divide-se, para fins didáticos, a responsabilidade civil em contratual e extracontratual, sendo de nosso interesse o contrato de transporte de mercadorias e a responsabilidade civil contratual do agente causador do dano. Considerando que a responsabilidade civil contratual significa descumprimento de obrigações contratuais, seja ele total ou parcial, no transporte internacional marítimo de mercadorias insere-se a responsabilidade civil contratual nos casos de avaria, perda ou atraso decorrente de violações às obrigações contratuais previstas no contrato. A aferição da culpa dependerá de verificação da conduta do agente à luz de suas obrigações contratuais.
Em um contexto de pandemia, com efeitos econômicos reconhecidos mundialmente, a aferição de risco no caso de transporte de mercadorias deve ser a primeira coisa em mente, especialmente porque o Brasil, enquanto país de exportadores e importadores, considera que a responsabilidade do transportador é objetiva e contratual.
O ex- Diretor Geral Adjunto de Saúde, Segurança e Meio Ambiente interino da Organização Mundial da Saúde, Dr. Keiji Fukuda, já afirmou que “uma pandemia é um surto global” (2009). Diversos países decretaram o isolamento social e demais protocolos de segurança, assim como empresas, escolas e escritórios aderiram ao serviço remoto, a fim de restringir a contaminação. Entretanto, este cenário demonstra-se um risco para o comércio exterior.
A Organização das Nações Unidas prevê que o transporte de mercadorias pode decair em um terço, agravado, especialmente, em países sem acesso ao mar. O secretário da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, Mukhisa Kituyi, afirmou, ainda, que “O fechamento de fronteiras, restrições de viagens e triagem aumentada resultaram em longas filas nas fronteiras terrestres e congestionamentos em portos e aeroportos em todo o mundo”.
É importante ressaltar que, devido à pandemia, alguns portos estão trabalhando com expedientes e funcionários reduzidos, atrasando a atracação de embarcações, o que pode ensejar maiores custos às partes. Existem certas possibilidades contratuais facilitadoras no transporte marítimo, assim como na compra e venda de mercadorias. Destacamos, especificamente, as normas e portarias referentes ao novo procedimento de atracação no Porto de Santos e à medidas sanitárias a serem adotadas em portos e embarcações, frente aos casos do novo coronavírus (COVID-19)., emitidos pela Santos Port Authority e pela Agência Nacional de Transporte Aquaviário, respectivamente.
Nesse cenário de vulnerabilidade econômico, abordamos sobretudo a cláusula de força maior nos contratos.
No Brasil, os institutos da força maior e do caso fortuito estão dispostos no Código Civil, além de serem amplamente debatidos pela doutrina. Carlos Roberto Gonçalves entende que “Em geral, a expressão caso fortuito é empregada para designar fato ou ato alheio à vontade das partes [...] E força maior para os acontecimentos externos ou fenômenos naturais” (2019, p. 385.). Divergente, Pontes de Miranda atentava para o fato de que força maior e caso fortuito deveriam ser tratados como equivalentes (2019, p. 109), como fez o próprio Código Civil[1].
O Superior Tribunal de Justiça fundamenta sua jurisprudência no sentido de que força maior decorre da impossibilidade de cumprir determinada obrigação por motivo superveniente. Assim, é possível afastar a responsabilidade das partes, salvo se houver assumido o risco contratual. O STJ entende, portanto, demonstrado pelo julgamento do AREsp 1.347.713/SP, que a impossibilidade no cumprimento da obrigação deve ser absoluta, a fim de evitar macular o direito, além do enriquecimento sem causa, assunto tratado por Maria Helena Diniz, “o devedor deverá restituir ao credor o que porventura recebeu anteriormente, e, havendo recusa da parte deste, poderá recobrar o indevido”. Sobre demasiada onerosidade contratual, o STJ entende, ainda, que “não se mostra razoável o entendimento de que a inflação possa ser tomada, no Brasil, como álea extraordinária, de modo a possibilitar algum desequilíbrio na equação econômica do contrato, como há muito afirma a jurisprudência do STJ.”, segundo julgado do REsp 744.446/DF.
Considerando o cenário global atual, entretanto, aquele que suscitar a força maior para justificar o inadimplemento de suas obrigações contratuais deverá ser extremamente cuidadoso; não basta simplesmente arguir a exclusão de responsabilidade, devendo comprovar que o fato – no caso alguma das consequências da pandemia – prejudicou qualquer possibilidade de adimplemento e que seus efeitos eram impossíveis de se evitar. A doutrina brasileira, ainda, menciona como características da força maior a imprevisibilidade e a inevitabilidade.
No início da pandemia a imprevisibilidade e inevitabilidade eram claras nos casos de descumprimento de contratos assinados até então, mas os firmados atualmente, cujo adimplemento foi idealizado com as limitações e entraves logísticos causados pela paralisação, não se enquadram automaticamente na hipótese de força maior. Na verdade, para a defesa da tese de força maior, esse é outro cenário que deve ser abordado com cautela pelas partes.
Por fim, no caso do transporte marítimo internacional a atribuição de responsabilidade deve ser analisada conjuntamente com a cadeia documental, tanto os relacionados ao transporte em si quanto aos contratos que envolvem a própria utilização do navio, se houver.
Referências
1- SILVEIRA, Matheus. Pandemias: O que são e como os países se comportam?. Disponível em: https://www.politize.com.br/tag/saude/ (citação Dr. Keiji Fukuda "uma pandemia é um surto global".)
2- Volume global de transporte de mercadorias em 2020 pode cair em um terço, diz ONU. Disponível em: https://istoe.com.br/volume-global-de-transporte-de-mercadorias-em-2020-pode-cair-em-um-terco-diz-onu/ (citação do secretário da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, Mukhisa Kituyi.)
3- COLLYER, Wesley O. A importância do direito marítimo e da regulação dos transportes e portos para o desenvolvimento da logística. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2238-10312013000100012&script=sci_abstract&tlng=pt (citação "95% (ANTAQ, 2010; MDIC, 2010)")
4- QUINTELLA, Felipe. Pandemia do novo coronavírus: caso fortuito ou força maior?. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/04/01/coronavirus-caso-fortuito-ou-forca-maior/ (citação da doutrina de Carlos Roberto e Pontes de Miranda)al de Contas e seu papel de fomento a uma nova postura da Agência Reguladora, do Poder Concedente e demais gestores envolvidos a fim de aprimorar os modelos vigentes de exploração do setor portuário.