Abordaremos aqui o disposto no vetusto diploma que ainda rege os denominados fatos da navegação e suas repercussões no ordenamento jurídico penal, mais precisamente no art. 261, CP.
Encetando as competentes representações junto ao Tribunal Marítimo, em consonância com o mister atribuído pela Lei nº 7.642, de 18 de dezembro de 1987, a Procuradoria Especial da Marinha, costumeiramente, lança mão do comando presente no art. 15, “f” da Lei 2.180/1954.
“Art . 15. Consideram-se fatos da navegação:
(...)
f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional.”
Os questionamentos que devem ser feitos são os seguintes: teria o diploma, cujo objeto versa estritamente sobre fatos da navegação, o condão de capitular delitos antes da persecução penal e decisão transitada em julgado de sentença penal condenatória? E crível imaginar que o encampado pela Procuradoria da Marinha e decidido pelo Tribunal Marítimo tenha repercussão na seara criminal?
Permitimo-nos iniciar pela segunda indagação, que nos parece mais tranquila de ser dirimida. Claro que existe a incomunicabilidade das instâncias, i.e., não há que se imaginar a decisão do Tribunal Marítimo (órgão meramente auxiliar do Poder Judiciário), invadindo a competencia do juizo criminal.
Contudo, não podemos olvidar que, uma vez advindo a competente representação com espeque no art. 15, “f” da Lei 2.180/1954 e, porventura, reconhecida a tese pelos julgadores do Tribunal Marítimo, certamente, alguma influência poderá respingar na futura tipificação do delito, sobretudo, o previsto no art. 261 do Código Penal.
“Atentado contra a segurança de transporte marítimo, fluvial ou aéreo
Art. 261 - Expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente a impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos.”
Sem prejuízo da influencia que poderá ocorrer, temos que a lei regente dos fatos da navegação não poderia se arvorar em capitular qualquer conduta delitiva. No tipo penal apontado, por exemplo, a melhor doutrina (vide Guilherme Nucci em seu Código Penal Comentado, p. 911, 2006, excerto abaixo transcrito) remete ao dolo de perigo, significando o animus de praticar uma conduta deliberadamente voltada à causação de perigo para terceiros.
“Elemento subjetivo do tipo: é o dolo de perigo, ou seja, a vontade de gerar um risco não tolerado a terceiros. Não se exige elemento subjetivo específico, nem se pune a forma culposa, salvo se houver sinistro.”
Sob esse prisma, imperioso atinar que quaisquer dos fatos da navegação aludidos na Lei 2.180/1954 podem subsistir sem a presença do elemento subjetivo (dolo) exigido para consecução da conduta prevista no art. 261 do Código Penal.
Nesse passo, a conduta prevista na alínea antecedente à ora em comento (art. 15, “e”, Lei 2.180/1954), per se, afigura-se suficiente para descrever o fato da navegação – “fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo” -, passiveis de ensejar eventuais reprimendas pelo Tribunal Marítimo (art. 121, Lei 2.180/1954).
Assim, pensar além dos estritos fatos da navegação e tipificar delitos não estaria na sua alçada, mesmo porque levaria os operadores da lei, no caso os representantes da Procuradoria Especial da Marinha e julgadores do Egrégio Tribunal Marítimo a antecipar a persecução penal, algo conferido constitucionalmente à Autoridade Policial, Ministério Público e Magistratura, quer na fase inquisitiva, quer no curso de eventual ação penal.
No melhor dos cenários, em nosso modesto entender, deveria o auspicioso legislador dos idos da década de 1950, ter restringido a letra da Lei 2.180/1954, àquilo que verdadeiramente teve como proposta – definir fatos da navegação e impingir as respectivas responsabilidades.
Os eventos afetos à segurança da embarcação, vidas e fazendas de bordo, estritamente considerados fatos da navegação com previsao no art 15, "e" da Lei 2.180/1954, estão inteiramente sujeitos aos consectários previstos no art. 121, caso assim decida o Tribunal Marítimo, órgão especializado para tanto.
Antecipar a persecução criminal e tipificar crimes, como fez a lei em apreço, todavia, não é prudente e pouco recomendável àqueles que não são os operadores do direito na seara criminal. Descabe, assim, à Procuradoria da Marinha e ao Tribunal Marítimo formular representações e pautar decisões, respectivamente, com esteio em tipos penais que, sequer, foram objeto de persecução criminal e tampouco levaram ao decreto condenatório.
Por fim, ressaltamos que não se desconsidera por completo o previsto no art. 15, “f” da Lei 2.180/1954. Poderia o membro da procuradoria especializada, assim como o douto representante do Tribunal Maritimista, lançar mão da tipificação delitiva nos casos de ação penal com trânsito em julgado, a fim de subsidiar a representação e a condenação na seara especializada no trato da navegação.
Autor: Marcel Nicolau Stivaletti