O cancelamento ou cassação é uma espécie de sanção administrativa temida por todos os intervenientes nas operações do comércio exterior. E nem poderia ser diferente. Sua decretação, desde que aplicada com os critérios legais estabelecidos, culmina com verdadeira “pena de morte” imposta à pessoa jurídica.
Dentre as hipóteses previstas de cancelamento ou cassação contidas na Lei nº 10.833/03, tem-se a aplicação pela prática de “ação ou omissão dolosa tendente a subtrair ao controle aduaneiro, ou dele ocultar, a importação ou a exportação de bens ou de mercadorias”.
É notório que o crime se especializa, se profissionaliza e a cada dia está mais criativo. As operações noticiadas rotineiramente nos jornais revelam esta prática. Para combatê-las, os agentes do Estado precisam, da mesma forma, ser criativos.
Porém, nem sempre a criatividade estatal vem acompanhada, como deveria, da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria. A Aduana, por vezes, peca por aplicar a cassação pela pura e simples presunção.
Recentemente, houve notícia de que um importador sofreu autuação fiscal a pretexto de ter subtraído mercadorias sob o controle aduaneiro. Grosso modo, os auditores fiscais presumiram – de forma completamente arbitrária e ilegal – que o importador, ao invés de processar a nacionalização dos bens por meio da declaração de importação, substituiu-as por outros (bens) sem conteúdo econômico, simulando o abandono.
A compreensão desta situação fica mais aquilatável dando-se nome aos “bois”. Respeitando, óbvio, o sigilo fiscal das informações, cria-se um hipotético cenário extraído do caso concreto, alterando seus ingredientes por tons figurativos: um determinado importador adquire no exterior um lote significativo de mercadorias que se diz conter “lebres” em suas embalagens. Tais mercadorias são armazenadas, sob controle aduaneiro, em um recinto alfandegado. O importador deixa de processar o despacho de importação e as suas “lebres” são consideradas abandonadas. Em procedimento regular de apreensão de cargas abandonadas, a Aduana constata que o conteúdo das embalagens continha “gatos” ao invés das “lebres” devidamente declaradas no conhecimento de transporte.
E aí inicia-se o mundo fantasioso arquitetado no imaginário dos auditores da RFB: para os fiscais, o motivo do importador ter solicitado a mudança de regime de transporte, que inicialmente era “house to house” (entrega do contêiner com a carga no estabelecimento do importador), alterado então para “house to pier”, com pedido de desunitização das cargas, propiciou neste interregno de tempo a troca das “lebres por gatos”.
É certo que o importador, mais do que ninguém, tem o dever de fazer ressalvas e protestos para o resguardo de seus direitos ao suspeitar de um resquício mínimo de qualquer avaria e ou extravio em suas mercadorias. No caso específico, o seu silêncio foi interpretado pela Aduana como uma ação dolosa tendente a subtrair a importação de suas “lebres” ao controle aduaneiro.
Ciente do golpe do exportador Chinês, competia ao importador a ressalva/protesto, com subsequente devolução ao exterior da carga importada. A opção barata saiu cara, vale dizer, a opção pelo abandono fê-lo crer que estaria livre do defunto. Mal assessorado estava este importador. Não demorou muito, eis que surge a conta do funeral: além da sanção administrativa que se seguiu (cassação), a lei culminou-lhe a responsabilidade por todos os gastos incorridos na destruição dos “gatos” e na multa de R$10,00 por kg. de “gato” (art. 46, §6º e §10 da Lei nº12.715/12, com redação dada pela Lei nº13.097/2015). Afora isto, o silêncio do importador no ato da desunitização das cargas fez com que os auditores fiscais presumissem – também de forma arbitrária e ilegal –, um suposto concluio entre e importador e o recinto alfandegado, a fim de que debaixo de seu “bigode”, permitisse a troca dos “gatos” pelas “lebres”, a troco de “banana”, resvalando a este último mesma sanção administrativa de cassação.
Pois bem. Dentro deste cenário ilustrativo e retomando o raciocínio que gerou a lavratura do auto de infração com aplicação da cassação da habilitação para importar mercadorias, restou claro que se o importador deixa de fazer suas ressalvas/protestos à RFB – em alusão ao “fato x” de BARBOSA MOREIRA1 –, este fato, por si só, não é suficiente para autorizar os fiscais a presumir que nas embalagens desunitizadas continham “lebres” ao invés de “gatos”.
A dificuldade que se tem para o importador é justamente a constituição de provas de fato negativo 2, vale dizer, provar que quando da desunitização suas cargas embaladas já continham “gatos”, sendo que as atuais embalagens apreendidas pela Aduana eram as mesmas que àquelas (inexistência de troca de embalagens), sobretudo quando a disponibilização das imagens (filmagens ou fotografias) ficam mantidas pelo Recinto alfandegado em arquivo no prazo de 90 dias, a teor do art. 17, §2º da Portaria RFB nº 3.518/2011.
Agindo dessa maneira, os auditores fiscais insistem pela mesma fórmula para culminar em conclusão de extrema gravidade: dolo de subtrair. Dos mesmos conceitos de BARBOSA MOREIRA, “se ocorreu x, deve ter ocorrido y”, tem-se:
ausência de ressalva/protesto do importador → existência de “Lebres” → (“se ocorreu x”) (“deve ter ocorrido y”)
→ “Gatos” ao invés de “Lebres” → subtração (“se ocorreu x”) (“deve ter ocorrido y”)
Nota-se, novamente, que os auditores fiscais partem de uma presunção – dolo de subtrair bens e mercadorias sob controle aduaneiro – de natureza estritamente penal, com o propósito de configurar o enquadramento do importador na pena de cassação da habilitação para importar.
Porém, para esta conclusão, há uma nítida inversão de valores: os auditores fiscais não podem se valer da sua condição para imputar delito de natureza criminal – dolo de subtração de bens e mercadorias sob controle aduaneiro – e fazer disto outro “trampolim” para a aplicação de sanção administrativa máxima prevista no art. 76, III, ‘g’ da Lei nº 10.833/03.
Os conceitos de natureza eminentemente jurídico-penal não podem ser transpostos ao Direito Aduaneiro, sem que, para tanto haja, necessariamente, uma ampla instrução probatória. No mínimo, este procedimento administrativo deveria restar suspenso até que provado, no âmbito penal, a ação dolosa de subtração do importador, sob pena de expressa ofensa ao art. 5º, LVII da CF/88.
No pior dos cenários, a ausência de ressalvas/protestos por parte do importador desdobraria em uma sanção administrativa de advertência. Isto porque, a finalidade da administração em punir o importador em razão da irregularidade apontada é plenamente acolhida pela hipótese de “prática de ato que prejudique a identificação de mercadoria sob controle aduaneiro” (art. 76, I, ‘e’ da Lei nº 10.833/03, com redação dada pela Lei nº 13.043/143).
Conclui-se que onde há regra específica a tratar do assunto, esta prevalece sob todas as demais genéricas que se pretendam discipliná-lo. Além de ofensa à regra de hermenêutica da especialidade, a cassação da habilitação para importar mercadorias fere diretamente o livre exercício da atividade de qualquer interveniente nas operações do comércio exterior (art. 5º, XIII da CF/88), que no caso, o importador, terá como efeito o “cancelamento de seu RADAR” como uma imposição de medida excessivamente rigorosa e desproporcional à situação exposta. Na máxima clássica de JELLINEK, “não se abatem pardais disparando canhões”.
Portanto, destas lições acima colhidas de um caso concreto, embora figurativo, fica o alerta para os importadores que a opção “barata” pode sair demasiadamente “cara”, dado que provar para Aduana que “seis é meia dúzia” é um caminho longo e árduo a ser percorrido. Fica, ainda, e sobretudo, o alerta também para os auditores fiscais que a aplicação da pena de cassação de habilitação, partindo-se de presunção, além de ilegal e arbitrária é atentatória à razoabilidade e proporcionalidade, devendo a própria Administração rever, de forma urgente, seus próprios critérios de apuração às supostas infrações praticada pelos intervenientes nas operações do comércio exterior.
1. “Quando o juiz passa da premissa à conclusão, através do raciocínio, ‘se ocorreu x, deve ter ocorrido y’, nada de novo surge no plano material, concreto, sensível: a novidade emerge exclusivamente em nível intelectual, in mente iudicis. Seria de todo impróprio dizer que, nesse momento, se adquire mais uma prova: o que se adquire é um novo conhecimento, coisa bem diferente” (g.n.). JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA In “As presunções e a prova”, Temas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva: 1977. 2. A jurisprudência usa a expressão de prova diabólica para designar a prova de algo que não ocorreu e/ou que se encontra em poder de terceiro.
Autor: Fernando Moromizato Jr.