O insigne jurista gaúcho e ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Maximiliano (1873 – 1960) discorreu em sua obra magna sobre o brocado que guia a hermenêutica jurídica até os dias atuais: ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus (onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir).
Segundo o jurista, a regra não é absoluta, podendo haver restrição, se existirem disposições sobre o mesmo tema inserto em lei diversa [1].
O que seria lei diversa é o que se pretende alcançar no presente artigo, para os fins que delimita.
Tratamos especificamente das multas aplicadas pela autoridade aduaneira a transportadores, agentes marítimos e de carga pela inserção ou retificação de informações no sistema Siscomex Carga fora do prazo previsto pela IN RFB nº 800/2007.
É o caso em que, apesar de inserida ou retificada fora do prazo, a informação é disponibilizada no sistema (muito tempo) antes da atuação da respectiva alfândega, deixando-o em ordem para o fim que se destina, qual seja, o registro, acompanhamento e controle das operações de comércio exterior. Em algumas situações, a aduana tarda quase cinco anos para iniciar a apuração da infração, após a regularização pelo particular.
Não restam dúvidas que em tais situações, ficando configurada a hipótese excludente de responsabilidade tributária, nos termos do artigo 138 do Código Tributário Nacional: a denúncia espontânea.
Doutrinariamente, “a denúncia configura-se pela comunicação, feita pelo infrator à autoridade competente, do fato constitutivo da infração. A espontaneidade dessa denúncia configura-se pelo fato de ser feita a comunicação antes do início de qualquer procedimento administrativo, ou medida de fiscalização, relacionados com a infração” [2].
Seguindo o mesmo raciocínio do CTN, a Medida Provisória nº 497/2010, convertida na lei nº 12.350/2010, alterou o § 2º do artigo 102 do Decreto-Lei nº 37 de 1966, para explicitar a aplicabilidade da denúncia espontânea no campo das infrações administrativas.
Pode-se fazer um comparativo entre a denúncia espontânea e o instituto penal da delação premiada, sob todos os holofotes midiáticos recentes. Não há sentido incentivar o infrator da lei a denunciar a infração se, de outro lado, não se beneficia a atitude.
Ocorre que a Presidência da República, reconhecendo haver a possibilidade de denúncia espontânea em referidos casos, passou a tentar frear a aplicação do instituto, quando da edição do atual Regulamento Aduaneiro (Art. 683, §3º do Decreto nº 6.759/2009).
Esta defesa institucional da União, em que pese contra legem, também foi adotada pela Receita Federal do Brasil, quando da alteração do § 2º do Art. 32 da IN 800/2007 através da IN RFB nº 1.473/2014. Estabeleceu-se que a chegada do navio ao primeiro porto no país caracteriza o fim da espontaneidade para a denúncia da infração.
Ora, é inaceitável que o Regulamento Aduaneiro, Decreto que não possui caráter de norma legal stricto sensu, sobreponha-se à disposição expressa de Lei Ordinária (Decreto-Lei nº 37/1966).
O mesmo há de se dizer do ato normativo do Sr. Secretário da Receita Federal.
Entender por via diversa é aceitar ato de governo contrário à lei federal. De certo, o Decreto Presidencial e a Instrução Normativa disporem contra a Lei Ordinária viola o princípio da legalidade estrita.
Ora, não podendo Instrução Normativa criar obrigações acessórias não previstas em lei, não há de afastar excludente de responsabilidade expressamente prevista em lei.
O Art. 97, V do Código Tributário Nacional é expresso ao definir que somente a lei poderá cominar penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos.
Cabendo à lei em sentido estrito estabelecer penalidade e, prevendo a própria lei situações excepcionais onde a penalidade não será aplicada, não cabe à “lei menor” criar restrições contra a disposição da “lei maior”.
O Art. 113, § 2º do Código Tributário Nacional estabelece que as obrigações acessórias decorrem da legislação tributária e, assim, por óbvio, tem sua imposição restrita à lei em sentido estrito.
Hugo de Brito Machado ensina que a reserva legal se dá em razão da representatividade de quem define as infrações e suas excludentes. Cabendo ao Poder Legislativo ditar as regras do jogo, presume-se que são os próprios contribuintes que legitimam o ato [3].
A estrita legalidade é corolário lógico do princípio da segurança jurídica e, mais que isso, do próprio pacto democrático. Reservar à lei em sentido estrito obrigações e consequente exceções é garantir que apenas os representantes eleitos pelo povo (Poder Legislativo) poderão criar restrições de direitos.
É certo que a Constituição Federal, em seu Art. 237, delega ao Ministério da Fazenda a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior. Ocorre que, em nenhuma hipótese, fiscalizar e controlar poderá ser interpretado extensivamente como legislar, mormente criando restrição de direito não prevista na legislação em sentido estrito.
As lições de Maximiliano, datadas de 1925, ainda nos são contemporâneas. Seriam Arthur Bernardes e a República Velha mais respeitosos às instituições democráticas que os mandatários atuais?
Autor: Wagner Lucas Rodrigues de Macedo
[1] MAXIMILIANO, Carlos. “Hermenêutica e aplicação do direito”. 5ª edição – Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1951. Pág. 300. [2] MACHADO, Hugo de Brito. “Comentários ao código tributário nacional, volume II”. São Paulo: Atlas, 2004. Pág. 643. [3] MACHADO, Hugo de Brito. “DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CONTRIBUINTE E A EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO”. Atlas: São Paulo, 2009.