O anteprojeto de mudança da Lei nº 12.815/2013 (Lei dos Portos) trouxe alguns pontos polêmicos, dentre eles, se encontra a discussão sobre a aplicação do princípio da modicidade no microssistema jurídico da regulação portuária.
Destaco as principais mudanças propostas pelos autores do anteprojeto:
LEI DOS PORTOS Nº 12.815/2013 | ANTEPROJETO | ||
Fundamento legal: Art. 3º, Lei dos Portos | Fundamento legal: Art. 4º, Anteprojeto | ||
Caput | A exploração dos portos organizados e instalações portuárias, com o objetivo de aumentar a competitividade e o desenvolvimento do País (...) | Caput | A exploração dos portos públicos e privados, bem como a atividade de operação portuária, com o objetivo de aumentar a competitividade e promover o desenvolvimento do País (...) |
II | Garantia da modicidade e da publicidade das tarifas e preços praticados no setor, da qualidade da atividade prestada e da efetividade dos direitos dos usuários | III | Garantia da modicidade e da publicidade das tarifas praticadas pelas autoridades portuárias nos portos públicos ou administrações portuárias nos portos concedidos |
II | Garantia da modicidade e da publicidade das tarifas e preços praticados no setor, da qualidade da atividade prestada e da efetividade dos direitos dos usuários | V | Estímulo a modicidade de preços praticados no setor, da qualidade da atividade prestada e da efetividade dos direitos dos usuários; |
Vale ressaltar que embora o conceito de serviço público seja objeto de divergência doutrinária, é possível identificar uma convergência em torno de três elementos essenciais:
Material: diz respeito à realização de atividades destinadas ao atendimento do interesse coletivo
Subjetivo: caracterizado pelo vínculo com o Estado, que exerce a titularidade ou delega a execução do serviço
Formal: que se refere à observância de procedimentos e prerrogativas típicos do Direito Público, voltados à garantia da continuidade, eficiência e universalidade na prestação do serviço.
Nesse sentido, doutrinadores como José Cretella Júnior defendem um conceito amplo de serviço público, abrangendo toda atividade estatal voltada à satisfação de necessidades públicas.
Em contraposição, Celso Antônio Bandeira de Mello adota uma concepção mais restritiva, definindo os serviços públicos como atos administrativos, conforme disposto no art. 2º, inciso II, da Lei nº 13.460/2017, caracterizando-os como "atividade administrativa ou de prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população".
Apesar das divergências existentes, a Constituição Federal estabelece o fio condutor do conceito de serviços públicos no seu artigo 175.
Cabe notar, assim, que diversas atividades estabelecidas no artigo 21 da Constituição Federal contemplam a delegação dos serviços originalmente atribuídos à União à iniciativa privada por meio de instrumentos jurídicos como autorização, permissão ou concessão.
A modicidade tarifária, por sua vez, acompanha a referida transferência, pois está diretamente alinhada ao exercício de atividades que, embora permaneçam sob a competência da União por força da Constituição, podem ser desempenhadas por outros agentes através de instrumentos contratuais.
Logo, a modicidade tarifária pode ser definida como um instrumento destinado a equilibrar a oferta de custos acessíveis aos usuários com a garantia da sustentabilidade financeira dos serviços prestados, bem como a viabilização dos investimentos necessários nos setores em que é aplicada.
No que se refere aos modelos de regulação tarifária, a doutrina sustenta que podem ser adotadas duas abordagens distintas:
(i) a regulação ex-ante, na qual os preços máximos são previamente definidos com base em estudos de custos e projeções econômicas, visando garantir que as tarifas sejam adequadas antes de sua implementação; e
(ii) a regulação ex-post, que consiste na revisão e, se necessário, no ajuste dos preços praticados pelas operadoras privadas, levando em consideração as condições reais de mercado e a evolução dos fatores econômicos que impactam a atividade.
Assim, ainda que o Anteprojeto da Lei dos Portos proponha a substituição do termo “garantia” por “estímulo”, na prática, a modicidade tarifária continuará a subsistir como um componente intrínseco e regulador essencial dos serviços públicos.
Dessa forma, ainda que a proposta legislativa venha a mudar perspectiva de garantia para o estímulo à modicidade, não se pode dizer que os intervenientes do setor poderão simplesmente ignorar a importância deste princípio.
Por tudo isso, persistem inúmeras indagações que, infelizmente, carecem de resposta: como assegurar que o mero “estímulo” ao cumprimento desse princípio será suficiente para proteger os usuários frente à dinâmica do mercado?
Até que ponto essa mudança legislativa poderia comprometer a continuidade, a eficiência e a universalidade dos serviços prestados no setor portuário?
E, mais importante, estaria tal alteração em consonância com os fundamentos constitucionais que norteiam a delegação de atividades públicas à iniciativa privada, especialmente no que tange à promoção do interesse público e à preservação dos direitos dos usuários?
Essas e outras inquirições ainda demandariam uma análise crítica e empírica, considerando os impactos reais e potenciais das alterações propostas.
Contudo, é inegável que, enquanto não houver um texto definitivo e consolidado de mudança da lei dos portos, qualquer conclusão permanecerá no campo das conjecturas.
Em linhas gerais, somente com o texto final será possível avaliar a extensão da mudança pretendida.
De qualquer forma, não se pode negar que a moldura constitucional aplicada pressupõe a prestação de serviços adequados e, nesse quadrante, não se pode excluir das competências atribuídas ao regulador, a avaliação da modicidade no caso concreto.
Fontes
BRAGA, Rodrigo Bernardes. Estruturas tarifárias dos portos organizados e dos arrendatários de instalações portuárias. In: BRAGA, Rodrigo Bernardes (Org.). Temas de regulação do setor portuário. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2024.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1998.
JESUS, Michael de. Direito Portuário no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2018.
JESUS, Victor Borges de. Serviços Públicos: A prestação módica de tarifas e o regime jurídico de pedágios. Jusbrasil, 2022.
JÚNIOR, José Cretella. Administração Indireta Brasileira, 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1987.
MELLO, Celso Antônio de. Curso de direito administrativo. 33ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2018.