De todos os termos jurídicos, a palavra “responsabilidade” é o que mais causa temor, em razão do seu possível impacto financeiro – comumente estratosférico – nas relações entre particulares[i]. Se necessário, então, a discussão sobre o nexo de causalidade e o liame obrigacional dos envolvidos; e, se invocada a atuação de alguma companhia seguradora, a preocupação apenas aumenta.
Pois bem; aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo[ii]. O transporte internacional de mercadorias, todavia, é assunto delicado no momento em que se faz necessária a atribuição de responsabilidade por eventuais avarias, seja pela quantidade de players envolvidos e pela cadeia contratual seja pela inadequação da lei à dinâmica do transporte.
A demonstração dos elementos que justifiquem a atribuição (ou não) da responsabilidade e o convencimento do magistrado(a) depende do patrono, porém na prática as partes deverão fazer tudo com a mais estrita diligência e zelo uma vez que aquele que alega - se houve ou não dano e nexo causal, etc. – deve produzir a prova que sustente a alegação.
São muitas as “diretrizes”, digamos, que credor e devedor devem observar na prática, antes mesmo de se pensar em ações judiciais.
No caso do contrato de transporte de mercadoria, independentemente do modal utilizado[iii], a regra geral é que o transportador responde pelo fato/dano em responsabilidade objetiva (e sua conduta não se sujeita à verificação de culpa ou dolo), uma vez que assume a obrigação de transportar a carga, incólume, ao destinatário final, nos termos dos artigos 749 e 750 do Código Civil.
Em outras palavras, supondo-se que o transportador receba a carga, sem qualquer ressalva relativa a elas e às condições do material que as acondicionavam durante o transporte, por exemplo, presume-se que as mercadorias embarcaram intactas, mas não chegaram ao seu destino no mesmo estado por falta de zelo do transportador. A inexistência de recusa no momento da entrega da mercadoria – esteja ela já desgastada, amassada, ou danificada de qualquer maneira – atrai para o transportador (devedor) todo o ônus da perda; mas, em casos raros, com possibilidade de reversão se existir prova ou condição favorável a ele[iv].
Ao credor, a título de ilustração, é atribuído o dever de mitigação dos danos, isto é, a parte que invoca a responsabilidade por avarias causadas na carga deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as circunstâncias que envolveram o acidente, para (de)limitar a perda e impedir o agravamento do dano experimentado. Se porventura o credor negligencia em tomar qualquer medida nesse sentido, a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante do dano que poderia ter sido diminuído; ou, ainda, a isenção total da responsabilidade.
E, como não poderia ser diferente, os reflexos da postura do credor podem influenciar no recebimento do valor aferido pela companhia seguradora, em ação própria, mesmo após o pagamento da indenização securitária em sua totalidade.
Em contrapartida, se o credor decidir afastar de imediato qualquer providência para verificação do dano, a exemplo de uma vistoria conjunta com os envolvidos no transporte para delimitar a extensão da perda, de modo que impeça qualquer contestação futura pelo(s) devedor(es), o risco de arcar com o prejuízo ocorrido é unicamente seu. Por consequência, se a seguradora entendeu conveniente efetuar a cobertura do sinistro (sem ressalva sobre os valores ou a falta de verificação), também assume o risco de não receber em regresso do valor total da avaria.
Em outras palavras, como atribuir a responsabilidade pelo dano, ou verificar se a pessoa indicada como responsável de fato o é, quando o próprio credor impossibilitou aferir a existência e/ou a extensão da avaria?
Veja que não se trata de hipótese em que a vítima concorreu culposamente para o evento danoso, mas sim que, após a ocorrência do dano, não permitiu ou dificultou a verificação da carga, por exemplo.
A imposição de responsabilidade no Direito Civil brasileiro depende de comprovação da existência do dano, do nexo causal entre a conduta do agente e a perda, e que as circunstâncias não envolviam qualquer hipótese de exclusão de responsabilidade; logo, caso não haja meio (idôneo) de verificação da ocorrência ou extensão da avaria alegada, a consequência jurídica se limita à total isenção de responsabilidade do transportador (devedor) ou à redução da indenização proporcionalmente à perda ou destruição do bem.
No caso de transporte de carga perecível, a própria natureza do objeto não isenta o credor da vistoria ou, no mínimo, da produção antecipada de prova; então, em raciocínio lógico, não haveria justificativa para a destruição ou destinação de produtos não perecíveis antes que qualquer vistoria conjunta fosse realizada. E diz-se “conjunta” porque, se não for realizada por perito judicial ou com o envolvimento de todos os interessados no momento da vistoria, poderá haver questionamento sobre a idoneidade da prova (i.e. laudo emitido pela empresa contratada exclusivamente pelo credor) no curso da ação judicial.
A dinâmica da responsabilidade civil depende de detalhes. Ainda que aparentemente sem importância a conduta das partes antes, durante e depois da solução da controvérsia, basta um erro para que a parte sofra com o prejuízo, muitas vezes pecuniário e a ser pago em moeda estrangeira.
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[i] “A responsabilidade civil alcança as obrigações que os indivíduos têm uns para com os outros, ainda que uma das partes se faça presente de modo coletivo ou difuso. Quando ocorre uma violação de uma dessas obrigações, o infrator da obrigação deve ressarcir à parte lesada o prejuízo causado, sendo típico nesta esfera o ressarcimento pecuniário”. Responsabilidade no Transporte Marítimo. Paulo Campos Fernandes e Walter de Sá Leitão., p. 26
[ii] Natureza reparatória e não punitiva, não podendo ser maior ou menor do que o dano infringido, sob pena de caracterizar enriquecimento ilícito. A indenização mede-se pela extensão do dano e admite o seu ressarcimento em pecúnia, desde de que, repita-se, proporcional à perda.
[iii] Com a ressalva, logicamente, dos contratos com a designação de Incoterm próprio, em que o momento de transferência do risco e da responsabilidade difere da regra mencionada.
[iv] APELAÇÃO. Ação regressiva proposta por seguradora contra transportadora de carga. Sentença de procedência. Insurgência da ré. Cobertura do sinistro pela seguradora que se sub-roga nos direitos da empresa segurada contra o autor do dano (arts. 349 e 786 do CC e Súmula 188 do STF). Avaria de mercadorias por molhadura e oxidação durante o transporte, havido o ressarcimento à segurada pela seguradora (autora). Responsabilidade objetiva ante o risco assumido, sendo evidenciada a deficiência na prestação do serviço, diante conjunto probatório apresentado. Ausente a excludente de responsabilidade da transportadora, sob o argumento de que empresa terceira foi contratada para prestar serviço de enlonamento, amarração e peação de cargas. Afastada a aplicação do "Termo de Isenção de Regresso" por conter expressamente a exceção do direito de ação regresso se os danos causados às mercadorias forem decorrentes de má conservação de lonas ou similares e/ou do veículo transportador. Sentença mantida. Recurso não provido. (TJSP; Apelação Cível 1018395-38.2017.8.26.0451; Relator (a): Régis Rodrigues Bonvicino; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Privado; Foro de Piracicaba - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/11/2020; Data de Registro: 25/11/2020).