Em recentes artigos publicados e algumas ações judiciais, vem sendo defendida a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de transporte –marítimo e rodoviário - de cargas, pactuados entre empresas.
Em que pese a competência desses autores, vimos defendendo posição contrária, propugnando pela aplicação do Código Civil. Este, portanto, o tema que abordaremos neste artigo.
É válido esclarecer que o Código de Defesa do Consumidor impõe ao prestador de serviço - transportador - responsabilidades e obrigações mais severas, além de um prazo prescricional mais dilatado para o “consumidor” propor a ação de reparação de danos.
Vamos ao tema.
De início, é importante ressaltar qual a intenção do legislador ao elaborar o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.
Como o próprio nome revela, esta lei especial veio tutelar, proteger o consumidor e re-equilibrar a relação de consumo. Se a intenção era proteger uma das partes – o consumidor -, concluiu-se que havia, inegavelmente, um desequilíbrio de forças, ou seja, existia uma parte hipossuficiente, vulnerável, que carecia da proteção normativa do Estado.
E foi justamente em um ambiente de desigualdade: liberalismo econômico e massificação de contratos de adesão, que surgiu o Código de Defesa do Consumidor.
Neste exato sentido: “... é freqüentemente sob o império da necessidade que o indivíduo contrata; daí ceder facilmente ante a pressão das circunstâncias; premido pelas dificuldades do momento, o economicamente mais fraco cede sempre às exigências do economicamente mais forte; e transforma em tirania a liberdade, que será de um só dos contratantes; tanto se abusou dessa liberdade durante o liberalismo econômico, que não tardou a reação, criando-se normas tendentes a limitá-las; e assim surgiu um sistema de leis e garantias, visando impedir a exploração do mais fraco.” (...) “visando impedir a exploração do mais fraco pelo mais forte, e os abusos decorrentes do acentuado desequilíbrio econômico entre as partes, o Estado procura regular, através de disposições legais cogentes, o conteúdo de certos contratos, de modo que as partes fiquem obrigadas a aceitar o que está previsto na lei...” (José Lopes de Oliveira, Contratos, p. 09)
Neste ponto, “forte x fraco”, comparamos o CDC à Consolidação das Leis do Trabalho, que surgiu, também, como lei especial, para tutelar e resguardar os direitos do trabalhador, considerado vulnerável.
Essa digressão ao espírito da lei é indispensável para entendermos o alcance de sua aplicação.
Avançando na questão, perguntamos: qual o conceito de consumidor? Quem se enquadra neste conceito e está amparado pelo CDC?
Segundo a definição da própria lei, “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatária final” (art. 2º, caput).
Cláudia Lima Marques, especialista no assunto, em sua clássica e atualizada obra, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, interpreta o conceito legal do destinatário final como “o consumidor que retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utiliza-lo”, “aquele que coloca um fim na cadeia de produção e não aquele que utiliza o bem para continuar produzindo, pois ele não é o consumidor-final, ele está transformando o bem, utilizando o bem para oferecê-lo por sua vez ao seu cliente, seu consumidor”.
Esta nos parece a melhor e mais sensata definição de consumidor-destinatário final.
E nesta direção, inclusive, o grupo dos países que formam o MERCOSUL, em sua Resolução 123/96 de 13.12.1996, tentou definir o conceito de consumidor-destinatário final, afirmando: “Não se considera consumidor ou usuário aquele que, sem constituir-se em destinatário final, adquire, armazena, utiliza ou consome produtos ou serviços com o fim de integrá-los em processos de produção, transformação, comercialização ou prestação a terceiros.”
No caso do transporte de cargas é indelével que se está diante de uma atividade- meio, isto é, o usuário do transporte de cargas, em regra, é uma pessoa jurídica que utilizará o bem transportado para produzir ou mesmo revende-lo ao consumidor final.
Não há nessa relação sujeito hipossuficiente ou vulnerável; quer vulnerabilidade técnica, jurídica ou fática. O que constatamos, amiúde, é que o transportador – principalmente o rodoviário - é a parte mais vulnerável na relação, obrigando-se a aceitar contratos padrões de grandes empresas.
Definitivamente, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de transporte de cargas é equivocada e, se insistida, estrangulará este ramo de atividade, de singular importância ao desenvolvimento do país, que já carrega uma responsabilidade civil deveras onerosa.
Ademais, no sentido do exposto, o Novo Código Civil Brasileiro, aplicável às relações interempresariais, prevê, em capítulo próprio, o contrato de transporte de cargas. Logo, este diploma é que deve reger a relação sob comento.
Concluindo, com fulcro nas alegações acima expostas, não há que se invocar, nas relações interempresariais, a aplicação do CDC às transportadoras de carga.
*Thiago Testini de Mello Miller, advogado, sócio da Advocacia Ruy de Mello Miller, especializada em Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro.