O costume generalizado dos motoristas em pernoitar dentro do veículo foi positivado pela Lei nº. 12.619/2012, conhecida como Lei do Descanso. Mesmo com o advento da Lei nº. 13.103/2015[1] essa diretriz foi mantida.
Nesse sentido, vejamos o que preleciona o artigo 235-C, § 4º da CLT:
Art. 235-C. A jornada diária de trabalho do motorista profissional será de 8 (oito) horas, admitindo-se a sua prorrogação por até 2 (duas) horas extraordinárias ou, mediante previsão em convenção ou acordo coletivo, por até 4 (quatro) horas extraordinárias.
(...)
§ 4o Nas viagens de longa distância, assim consideradas aquelas em que o motorista profissional empregado permanece fora da base da empresa, matriz ou filial e de sua residência por mais de 24 (vinte e quatro) horas, o repouso diário pode ser feito no veículo ou em alojamento do empregador, do contratante do transporte, do embarcador ou do destinatário ou em outro local que ofereça condições adequadas. (Redação dada pela Lei nº 13.103, de 2015)
Não obstante o permissivo legal, o número de demandas trabalhistas envolvendo pedidos relacionados ao pernoite realizado em veículo é alarmante. Horas extras decorrentes do tempo à disposição; horas de espera; sobreaviso; prontidão e indenização por danos morais são alguns exemplos.
Sem a menor pretensão de esgotamento do tema, faremos a seguir uma análise das decisões envolvendo os exemplos citados, evidenciado algumas medidas a serem adotadas pelo empregador no intuito de diminuir os riscos de condenação.
No entanto, antes de adentrarmos propriamente na exposição proposta, à exceção dos danos morais que dispensam maiores comentários, faz-se necessário conceituarmos os institutos mencionados anteriormente para melhor compreensão.
No tempo à disposição, o período em que o motorista permanece à disposição do empregador é considerado como jornada efetiva.[2] Portanto, as horas que ultrapassarem a jornada ordinária de 08 horas (ressalvadas as prorrogações admitidas de até 02 horas extraordinárias ou por até 04 horas extraordinárias mediante acordo coletivo), ensejarão o pagamento de horas extras.
Já o tempo de espera[3] se caracteriza pelo período em que o motorista fica aguardando carga ou descarga do veículo, tanto nas dependências do embarcador quanto do destinatário; bem como o tempo gasto com a fiscalização da mercadoria transportada em barreiras fiscais ou alfandegárias. Essas horas não são computadas como jornada de trabalho nem como horas extras, sendo indenizadas na proporção de 30% do salário-hora normal.[4]
No sobreaviso[5] a liberdade de locomoção do empregado é cerceada, na medida em que é obrigado a permanecer em sua residência aguardando ordens do empregador. Nesse caso o pedido é realizado por analogia, já que os motoristas alegam a permanência dentro do caminhão, aguardando ordens do empregador. As horas em sobreaviso são pagas à razão de 1/3 do salário normal.
Finalmente, no regime de prontidão[6] o empregado fica nas dependências do empregador apenas aguardando ordens. Ao contrário do tempo à disposição, nesse instituto o motorista não presta serviços efetivamente, mas tem direito à percepção de horas de prontidão à razão de 2/3 do salário hora normal.
Como primeiro exemplo, vale citar recente julgado envolvendo motorista contratado por uma indústria de medicamentos, que ajuizou reclamação trabalhista[7], pleiteando o pagamento de horas extras noturnas em decorrência do tempo à disposição. O trabalhador embasou seu pedido na obrigação de pernoitar no veículo, a fim de se evitar possíveis roubos da carga de alto valor.
Em 1ª instância, o pedido foi julgado improcedente em razão da obrigação de permanência do trabalhador no caminhão durante o pernoite não ter restado comprovada. Em contrapartida, o TRT reformou a decisão por entender que a empresa não fornecia escoltas e diárias para o pernoite, exercendo o motorista a defesa da carga transportada e por via de consequência, seu período de descanso era prejudicado, já que ficava em constante estado de alerta. No entanto, as horas extras não foram deferidas da forma como pleiteada pelo trabalhador (tempo à disposição). Foi considerado pela turma, que o período compreendido entre 22 horas de um dia e 06 horas do dia seguinte configuram tempo de espera, a serem indenizadas com base no salário-hora normal acrescido de 30% (trinta por cento) com seus respectivos consectários legais. Finalmente, o TST, mencionando diversos precedentes de Turmas e da Subseção 1 Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1), reformou a condenação, por entender que “no período de pernoite do motorista de caminhão não caracteriza tempo à disposição, uma vez que as funções de vigiar e descansar são naturalmente incompatíveis, tratando-se unicamente de circunstância inerente ao trabalho desenvolvido.”
Nos próximos exemplos, além do posicionamento do TST mencionado no parágrafo anterior, a inexistência de comprovação de permanência aguardando chamado e ausência de comprovação de que a empresa obrigava o motorista a dormir dentro do veículo foram fundamentos utilizados para o indeferimento de pedidos envolvendo o regime de prontidão, sobreaviso e tempo à disposição:
"RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI Nº 13.015/2014 HORAS DE SOBREAVISO - MOTORISTA - PERNOITE NO INTERIOR DO CAMINHÃO - TEMPO À DISPOSIÇÃO DO EMPREGADOR - DESCARACTERIZAÇÃO. Cinge-se a controvérsia em verificar se o tempo em que o motorista pernoitava no caminhão é considerado como tempo à disposição do empregador, nos termos do artigo 4º da CLT. No caso, é incontroverso 'que não restou comprovado nos autos que o empregado permanecesse no caminhão aguardando chamado do empregador para o trabalho'. De qualquer maneira, o empregado não poderia permanecer aguardando ordens ou ser chamado para o serviço enquanto dormia no caminhão, pois as funções de vigiar e descansar são incompatíveis. Assim, como é inerente ao trabalho desenvolvido, o período de pernoite do motorista no caminhão não caracteriza tempo de sobreaviso ou à disposição do empregador. Precedentes de Turmas do TST. Recurso de embargos conhecido e desprovido." [8]
“HORAS EXTRAS. PRONTIDÃO E SOBREAVISO. PERNOITE NO CAMINHÃO. O TRT considerou ser incontroverso o fato de o autor dormir na cabine do caminhão, entretanto, concluiu que a atividade de vigilância e guarda não é compatível com o período de sono do empregado. O período de pernoite do motorista de caminhão não caracteriza tempo de sobreaviso, uma vez que as funções de vigiar e descansar são naturalmente incompatíveis, tratando-se unicamente de circunstância inerente ao trabalho desenvolvido. Ademais, não há, no acórdão regional, elementos suficientes para se concluir que o reclamante era obrigado a dormir dentro do caminhão. Diante disso, para se concluir de forma diversa, no sentido de que o reclamante tinha que zelar pela carga transportada no período de pernoite, seria necessário o revolvimento do acervo fático-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula nº 126 desta Corte. Recurso de revista não conhecido” [9]
Finalmente, sobre a condenação ao pagamento de indenização por danos morais, transcrevemos os julgados a seguir:
MOTORISTA - PERNOITE NO CAMINHÃO - CONFIGURAÇÃO DE DANO MORAL - Comprovado nos autos que pernoitar no caminhão não era uma escolha do empregado, mas situação à qual se sujeitava o obreiro pelo procedimento adotado pela ré, a qual sem dúvida expunha a riscos iminentes a segurança e saúde do trabalhador, configurado está o ato ilícito patronal pela afronta aos artigos 1º , III e 5º , III da CR/88 , bem como às Normas Gerais de Tutela do Trabalho, previstas no Capítulo V do Título II da CLT , ensejando reparação na forma de indenização, conforme preceituado pelos artigos 186 e 927 do CC[10]
EMENTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – PERNOITE NO CAMINHÃO – ASSALTO – CABIMENTO. Ao determinar o pernoite no caminhão, o empregador expõe a segurança do motorista a riscos que, à toda evidência, decorrem da própria atividade e são muito maiores aos que outros trabalhadores e membros da coletividade em geral estão expostos. Assim, sendo o empregado vítima de assalto nessa situação, tem direito à indenização por dano moral.[11]
(grifamos)
Da análise superficial dos casos acima se conclui que o repouso diário realizado dentro do veículo deve ser uma opção do trabalhador e não imposição por parte da empresa. O fornecimento de diárias ao motorista para pernoite em pousadas comprova a inexistência de obrigação nesse sentido, prevenindo as hipóteses das demandas acima lançadas.
Por seu turno, o interior do veículo deve ser apropriado com leito, fornecendo condições efetivas de descanso ao trabalhador nas hipóteses em que o pernoite no próprio caminhão se fizer absolutamente necessário. A observância desse critério poderá evitar condenação relacionada ao pagamento de indenização por danos morais.
Conclusão lógica que toda carga possui valor, mas no caso desse ser demasiadamente expressivo, o fornecimento de escolta e diárias para pernoite em pousada também mitigará o risco de judicialização da questão, inclusive coibindo eventual pedido de indenização por danos morais. A observância dessas medidas, portanto, demonstrará a inexistência de obrigação do repouso no veículo e de vigilância da carga, além da manutenção de condições adequadas para fruição dos períodos de descanso ao trabalhador.
O local físico do pernoite também é considerado fator de suma importância pelos tribunais. Locais como postos de gasolina são considerados inseguros em razão de exporem o trabalhador a riscos de assaltos e sequestros, além de não fornecerem as condições de higiene, o que também pode ensejar condenação ao pagamento de danos morais.
Como dito, a pretensão do presente estudo não objetiva o esgotamento da matéria, uma vez que as possibilidades de demandas relacionadas ao pernoite no veículo são variadas, conforme demonstrado.
Conquanto o entendimento adotado pelo TST relacionado ao tempo à disposição transpareça o contrário, caso o trabalhador consiga comprovar o teor de suas alegações, as chances de condenação são altíssimas, motivo pelo qual sugere-se a adoção de uma posição mais conservadora do empregador no sentido de se evitar que o repouso seja realizado dentro do veículo. Em contrapartida, para os empregadores que, pautados no dispositivo legal, optarem por assumir os riscos, temos que a implementação das medidas acima propostas mitigará os riscos de futura condenação.
[1] Dispõe sobre o exercício da profissão de motorista; altera a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 9.503, de 23 de setembro de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, e 11.442, de 5 de janeiro de 2007 (empresas e transportadores autônomos de carga), para disciplinar a jornada de trabalho e o tempo de direção do motorista profissional; altera a Lei no 7.408, de 25 de novembro de 1985; revoga dispositivos da Lei no 12.619, de 30 de abril de 2012; e dá outras providências.
[2] Art. 235-C, § 1º da CLT.
[3][3] Art. 235-C,§ 8 da CLT.
[4] Art. 235-C, § 9o da CLT..
[5] Art. 244. § 2º da CLT e Súmula 428 do TST.
[6] Art. 244. § 3º da CLT
[7] Processo: RR-832-74.2013.5.03.0129. Data da Publicação 14.12.2018.
[8] E-RR - 196- 39.2013.5.09.0195, Relator Ministro: Renato de Lacerda Paiva, Data de Julgamento: 04/05/2017, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 26/05/2017.
[9] RR - 1133- 94.2012.5.04.0204, Relator Ministro: José Roberto
[10] TRT-3 - RO: 00103968520175030178 0010396-85.2017.5.03.0178, Relator: Juliana Vignoli Cordeiro, Decima Primeira Turma
[11] TRT-24 – 00242341220155240007 – publicação 14.02.2017