Quem nunca aguardou horas na fila do banco para tentar resolver algum problema causado por erro da própria instituição financeira? Ou passou horas e horas pendurado no telefone aguardando alguma solução para os problemas de internet, telefone, TV por assinatura, cobranças indevidas no cartão de crédito etc.?
A respeito desse valioso tempo desperdiçado surge a teoria do desvio – de tempo – produtivo do consumidor em detrimento da solução de problemas causados exclusivamente pelo fornecedor. O tempo é precioso: aliás, durante a pandemia do coronavírus todos pudemos dar-lhe o devido valor, revisitando e sopesando sua importância em cada um dos aspectos de nossa vida, tanto no campo profissional quanto no pessoal.
O tempo é uma grandeza protegida pela Constituição Federal, como demonstra o direito à razoável duração do processo, previsto em seu artigo 5º, inciso LXXVII, tornando-se cada vez mais essencial para a vida do cidadão e tratado como um direito imensurável, diante da impossibilidade de retorno ao seu status quo ante.
O desvio produtivo se conceitua como o tempo que o consumidor desperdiça cotidianamente, retirado do seu lazer, do seu tempo de trabalho, convívio familiar, social, etc., para sanar ocorrências em relação ao defeito, ou ao vício do produto ou serviço adquirido. A teoria nasce para que haja o dever do fornecedor em indenizar o consumidor pelo tempo que extrapola o razoável para a resolução de problemas ocasionados pelo próprio fornecedor.
Ensina Marco Dissaune[1] que os fornecedores devem “contribuir para a existência digna, promover o bem-estar e possibilitar a realização humana de seu consumidor, bem como de eventuais empregados e sócios e da comunidade que o cerca, em função dos quais ele existe”.
Na prática, infelizmente, a realidade é outra, pois é comum os fornecedores submeterem os consumidores a uma situação de mau ou péssimo atendimento, com demoras intermináveis para resolver muitas vezes questões simples, incorrendo em práticas abusivas, o que afronta a Constituição Federal e toda legislação de proteção ao consumidor[2], além dos próprios interesses do fornecedor em manter e fidelizar um cliente satisfeito.
Neste contexto, a teoria do desvio produtivo do consumidor surge justamente para enquadrar condutas como as acima descritas. Afinal, tais práticas abusivas contribuem para o enriquecimento ilícito do fornecedor, uma vez que, ao invés de procurar resolver o conflito ocasionado por ele mesmo, transfere a responsabilidade ao consumidor, o qual, com toda sua vulnerabilidade, acaba desperdiçando seu valioso tempo, muitas vezes sem ao menos conseguir obter a resolução do problema.
Em que pese a resistência inicial da doutrina e jurisprudência pátrias, que consideravam o tempo perdido pelo consumidor como mero aborrecimento, atualmente ambas vêm aplicando a teoria do desvio produtivo, adotando a chamada “Teoria da Responsabilidade Civil pela Perda do Tempo Útil”, a qual reconhece a importância do tempo na vida do cidadão, bem como determina a responsabilização dos fornecedores, que deverão ser condenados ao pagamento de indenização pelo tempo perdido pelo consumidor.
Ainda que a natureza dessa indenização tenha ocasionado controvérsias, com alguns estudiosos considerando-a como um tipo de indenização por danos materiais[3], em que o consumidor deveria comprovar quais “valores” foram perdidos em razão do tempo gasto com a tentativa de resolver o problema com o fornecedor, o que se vê na maioria da jurisprudência[4] é a inclusão da chamada “teoria do desvio produtivo” como mais uma base para condenação em danos morais, conforme aplicado pelo julgado abaixo[5]:
APELAÇÃO – DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO – TELEFONIA – COBRANÇA INDEVIDA – NEGATIVAÇÃO - ÔNUS DA PROVA – FALHA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS – DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR - Cobrança de dívida já quitada evidencia a falha na prestação de serviços por parte da requerida; - Não houve mero aborrecimento cotidiano, mas ofensa à boa-fé objetiva e aos direitos da personalidade do consumidor. A indenização por ofensa moral, portanto, deve ser reconhecida, observando-se que a tese sustentada pelo recorrente e utilizada por esta julgadora em casos semelhantes – desvio produtivo do consumidor – serve de base para a própria indenização por danos morais, não configurando nova modalidade de dano, com fixação de valor próprio; RECURSO IMPROVIDO.
Há, ainda, a minoria[6] que considera o chamado desvio produtivo como mero descumprimento contratual ou aborrecimento, sem que isso gere indenização por danos morais, porém, essa visão está aos poucos sendo superada pela jurisprudência.
Conclui-se que a “teoria do desvio produtivo” é atualmente amparada e aplicada por boa parte da doutrina e da jurisprudência, com a consequente condenação de fornecedores que cometem práticas abusivas em indenizar consumidores por danos morais. Trata-se de mais uma teoria que visa obrigar os fornecedores a realizar algo que lhes deveria ser intrínseco: respeitar os direitos e o tempo do consumidor.
[1] DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
[2] Exemplo – Código do Consumidor:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: [...]IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços; V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; [...] VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro); [...]XII - deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério.[...]
[3] GUOLLO, Flávia Pagnan. A Responsabilidade Civil do fornecedor pelos desvio produtivo do consumidor e do dano temporal no âmbito da jurisprudência do Estado de São Paulo. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação). Universidade Extremo Sul Catarinense. Ano 2017.
[4] TJSP; Apelação Cível 1016894-35.2016.8.26.0564; TJSP; Apelação Cível 1000931-79.2020.8.26.0003; TJSP; Apelação Cível 1006101-21.2018.8.26.0482; TJSP;Apelação Cível 1079223-15.2019.8.26.0100.
[5] TJSP; Apelação Cível 1006675-55.2020.8.26.0100; Relator (a): Maria Lúcia Pizzotti; Órgão Julgador: 30ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/07/2020; Data de Registro: 28/07/2020.
[6] TJSP; Apelação Cível 1004598-83.2018.8.26.0572.